Mais limonada, por favor!

Há um mês, poucos dias antes de iniciar a The Formation World Tour, mais uma vez Beyoncé conseguiu deixar o mundo boquiaberto ao transmitir na HBO americana seu então projeto secreto, Lemonade, e disponibilizar seu novo álbum na plataforma de streaming Tidal. A proposta audaciosa da cantora deixou a internet em um frenesi de críticas, elogios e desmerecimentos. 


Uma das críticas que mais me chamou atenção foi a da ativista estadunidense bell hooks. Sob o título Moving Beyond Pain (Movendo Além da Dor, em tradução livre), o texto faz uma análise do álbum visual de Beyoncé reconhecendo poucos pontos positivos e, em sua maior parte, fazendo uma dura crítica à posição de empoderamento negro e feminista da artista. Eu enquanto homem posso não fazer parte do movimento feminista, embora eu respeite e apoie o ativismo, mas enquanto ser humano de etnia negra eu tenho todo o direito de rebater determinadas críticas que desmerecem a nova fase da Beyoncé.

O artigo de bell hooks elogia as personagens presentes no Lemonade, que são mulheres negras de todos os tamanhos, formas e cabelos. Porém, as imagens reais dessas mulheres e de suas realidades ordinárias são sobrepostas por "um prato fashion de representações fantasiosas, estilos e coreografias". Além disso, para a autora, Beyoncé é controversa aos figurinos de época que aparecem na maior parte da obra visual quando a mesma inicia a narrativa vestindo uma blusa esportiva, assim como a atleta Serena Williams, que surge em determinado momento dançando com uma roupa também esportiva - o que para bell seria uma estratégia de marketing para a nova linha de roupas esportivas co-criada pela cantora. 

De qualquer forma, não enxergo essa divergência de figurinos como algo controverso, visto que é preciso entender o contexto da obra. Em Lemonade temos uma personagem central (Beyoncé), uma mulher que supostamente foi traída pelo marido e faz uma viagem interna através de suas emoções para entender o que está acontecendo consigo mesma e tentar resolver a situação; em contrapartida temos as imagens de diversas mulheres que passam ou já passaram pelo mesmo e fazemos uma viagem histórica pelos sofrimentos que a mulher como um todo passou há centenas de anos nas mãos de um patriarcado.

As críticas continuam com a afirmação de que Beyoncé supervaloriza o corpo feminino, reafirmando o estereótipo de mulheres voluptuosas e ocultando a era escravocrata, onde as mulheres negras eram vendidas e compradas por causa de seus corpos. Vamos com calma! Sim, em sua obra visual Beyoncé celebra as curvas femininas como forma de sugerir a autoaceitação de suas espectadoras. O objetivo não é chocar ou incitar a violência feminina, mas celebrar a mulher e o negro. 

Mais a frente bell hooks diz que embora Beyoncé e sua equipe colaborativa ousem oferecer imagens multidimensionais da vida feminina negra, "grande parte do álbum fica dentro de um quadro estereotipado convencional, em que a mulher negra é sempre uma vítima". E desde quando a mulher ou o homem negro, por mais bem sucedidos que sejam, não passam por algum tipo de preconceito racial? Em Lemonade, Beyoncé contrapõe o vitimismo com a luta pela igualdade social e socioeconômica. Será que a autora pulou a música 6 Inch, onde Beyoncé representa ela mesma presa em uma espécie de palco-vitrine? 

Músicas, assim como videoclipes, são trabalhados com metáforas, onde letras e atuações podem gerar diferentes interpretações a depender de contextos tanto do emissor, quanto do receptor. bell hooks diz: "E mesmo que o pai na canção Daddy Lesson's lhe dê um rifle alertando-a sobre os homens, ela não atira em seu homem. Ela veste um vestido amarelo dourado magnificamente concebido, desfila corajosamente através da rua com taco de beisebol na mão, quebrando carros aleatoriamente. Nesta cena, a personagem deusa Beyoncé é sexualizada, juntamente com seus atos de violência emocional, como 'Cavalgada das Valquírias' de Richard Wagner, ela destrói sem vergonha. Entre as muitas mensagens misturadas embutidas em Lemonade é esta celebração da raiva."


Esta é uma crítica totalmente fora de contexto da narrativa visual. Em Lemonade, após mergulhar em seus próprios sentimentos (olha aqui a metáfora) e duvidar da suposta traição de seu marido, Beyoncé entra em negação com a descoberta e sua ira é externada. Raiva é definitivamente um dos principais sentimentos de quando uma traição amorosa é descoberta. A atitude em pegar um taco de beisebol e quebrar carros e vitrines é nada mais que a representação (metáfora de novo) da raiva. E não, não é uma incitação à violência. Eu já fui traído e tive vontade de destruir tudo o que eu via pela frente - e realmente há quem faça algo do tipo. Sobre a Beyoncé estar sexy, bem, o que há de errado nisso? Assim como ela aparece sexy e enraivecida pelas ruas, há também uma Beyoncé casual e melancólica que pode ser vista na música Sandcastles

Em certo ponto, concordo quando hooks diz: "Neste mundo fictício, a dor emocional da mulher negra pode ser exposta e revelada. Pode ser dada voz: esta é uma fase vital e essencial da luta pela liberdade, mas não traz exploração e dominação ao fim. Não importa como as mulheres duras em relacionamentos com homens patriarcais trabalhem para a mudança, perdão e reconciliação, os homens devem fazer o trabalho de transformação interna e externa se a violência emocional contra mulheres negras está para acabar. Não vemos indícios em Lemonade. Se a mudança não é mútua então pode ser dada voz à dor da mulher negra, mas a realidade de homens infligindo dor emocional ainda vai continuar (podemos realmente confiar nas imagens de inquietação de Jay Z que concluem esta narrativa)." 

Contudo, Beyoncé narra uma história pelo olhar da mulher negra. Ela não afirma, mas também não nega que o homem precisa mudar seus conceitos sociais, políticos e socioeconômicos. Além disso, seria errôneo nomear a cantora como ativista, sendo que a mesma empodera negros e mulheres através de sua arte mas não se envolve diretamente em práticas sociais ou políticas para mudar a realidade das comunidades até onde sabemos. Michael Jackson, por exemplo, realizou incríveis obras sociais que foram além de sua arte, mas o Rei do Pop não os fez com o intuito de autopromoção, e a mídia, que poderia ter pautado essas ações, sequer deu importância. Ao invés disso, mentiras sobre ele eram publicadas a todo instante. É exatamente por isso que eu não critico a Beyoncé se ela usa o feminismo ou empoderamento negro em sua arte, afinal, não é uma questão de se autopromover, mas de usar a sua influência para abrir os olhos da massa. Beyoncé tem utilizado sua arte para chamar a atenção de problemas que mulheres e negros sofrem constantemente mas que passam batidos pela mídia e pela própria comunidade. Após Lemonade eu me senti mais negro e estou orgulhoso da minha cor, do meu nariz, do meu cabelo. Ela abriu os meus olhos, assim como abriu os de milhares de pessoas ao redor do mundo. A vida consiste no equilíbrio entre o doce e azedo sabor da limonada.

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